Em entrevista à Q TV em 2009, Leonard Cohen fala-nos de todos os seus medos e certezas, e quando questionado sobre o medo da morte que já se avizinhava, o mesmo responde que não é tanto a morte que o assusta, mas os preliminares da mesma.
Aqui podem entrar dúzias de argumentos a favor à eutanásia, mas não é propriamente por isso que cá escrevo. Cohen tinha a noção da sua própria mortalidade, como se tornara óbvio nos dois últimos álbuns lançados: You Want it Darker e Thanks For the Dance. No decorrer da entrevista, encontramos referência a Truman Capote, que dizia que “a vida é uma peça de teatro moderadamente boa, com um terceiro ato muito mal escrito”.
O que é certo é que é sempre muito difícil adivinhar esse terceiro ato, mas que em muitos causa o terror da expetativa. Um ato no teatro trata-se de uma divisão e entrada num novo segmento da história, sendo este aquele que irá concluir a narrativa escrita nos dois anteriores.
Pegando em terceiros atos, um que realmente me fascina é certamente o de Grigori Rasputin, um influente camponês russo assassinado a 16 de dezembro de 1916. A sua história não é propriamente desconhecida, por isso vamos sumarizar os primeiros dois atos para que nos possamos focar no terceiro.
Grigori Efimovich Rasputin nasceu a 10 de janeiro em Pokrovskoye, na Sibéria, provavelmente no ano de 1869. Aos seus 18 anos passou por uma transformação religiosa que o levou a passar três meses no Mosteiro de Verkhoturye. No seu regresso a Pokrovskoye, Rasputin chegara um homem totalmente diferente.
Apesar de ser casado com Proskoria Fyodorvna, com quem teve três filhos (duas raparigas e um rapaz), Rasputin começa a seguir a vida de um strannik, por outras palavras, uma vida de peregrino.
Mas o que o tornava assim tão especial? Rasputin afirmava ter poderes de cura, tendo com isso ganho influência no palácio, principalmente por ser o único a conseguir travar as crises de hemofilia de Aleksei Nikolayevich, filho do czar Nicolau II e da czarina Alexandra, imperadores russos que tinham em Aleksei o seu único descendente masculino. Se fosse só pela forma como Rasputin conseguia controlar as crises de Aleksei, se calhar não se falaria hoje do mesmo, não fosse que nas suas crenças, Rasputin acreditasse que a remissão do pecado chegava através do deboche.
Mostrar os seus poderes a Alexandra acabou por não ser a única ação de Rasputin perante a imperatriz, sendo que pouco depois tornou-se no confidente e conselheiro pessoal da mesma. Fazendo bem as contas à sociedade oligárquica russa do século XX, facilmente percebemos que a influência de Rasputin no czar era vista com desdém por parte da aristocracia. Em somatória, encontrávamos ainda as suas paixões por álcool e sexo, das quais parecia nunca ter suficiente de nenhuma.
Isto claramente levou a que muitos não gostassem de que este fosse uma presença na vida terrena, e aliando isto a que, juntamente com Alexandra, Rasputin ser a favor da paz com a Alemanha na Primeira Guerra Mundial, o que levava até Inglaterra a dispensar a existência de Rasputin, visto que não queria que a Alemanha deixasse a frente Oriental para se focar na Ocidental. Alertados do perigo que Rasputin trazia à monarquia, a família real recusou-se a prestar atenção à restante aristocracia. Então, quem serão os vilões deste terceiro ato?
Em cena entram o príncipe Felix Yusupov, o Gran Duque Dmitry Pavlovich e Vladimir Purishkevich, membro da Duma, que a 19 de novembro de 1916 faz um discurso onde acusa Rasputin de ser um génio do mal e Alexandra de ser uma alemã num trono russo. Após este discurso, Yusupov contacta Purishkevich para a realização do assassinato. O objetivo seria que o ataque realizado na madruga de 16 de para 17 de dezembro, contando com a falta de luz para ocultar os macabros planos.
O plano era simples: sabendo da paixão que Rasputin tinha por sexo, o grupo de conspiradores planeava usar Irina, esposa de Yusupov, como isco para o atrair ao palácio. Yusupov iria convencer Rasputin que a poderia encontrar no palácio para que tivesse uma interação sexual com a sua esposa. Aqui surge a primeira falha no plano: quando Yusupov escreve a Irina sobre a conspiração e o seu desejo de que ela pudesse contribuir para o mesmo, mas esta responde dizendo-lhe que não consegue fazer parte desse plano.
Isto leva a que os conspiradores tenham de encontrar uma nova maneira de atrair Rasputin. Mantendo o nome de Irina como isco, mas escondendo a sua presença, Rasputin iria para o palácio com Yusupov, onde à chegada encontraria o que se assemelha aos restos de uma festa privada, sendo que o plano seria envenená-lo com cianeto de potássio, que estaria misturado com uns bolinhos e entre o vinho.
Deixando para outra altura as falhas no plano que levou a que os conspiradores fossem apanhados, vamos então para passar para a noite do assassinato: perto da meia-noite, todos os conspiradores reuniram-se no palácio de Yusupov para limar as últimas arestas do plano, sendo que Lazovert mistura os cristais de cianeto de potássio em alguns bolinhos e em dois copos de vinho, deixando alguns doces sem os cristais de forma a que Yusupov acompanhasse Rasputin a manjar. Por volta da meia-noite e meia foram ao apartamento de Rasputin para o levar para o palácio.
À entrada, o peregrino ouve o barulho no andar de cima, sendo que Yusupov lhe diz que é Irina, e que está ocupada com alguns visitantes que ainda não tinham abandonado o palácio.
Para já, tudo corria consoante os planos dos conspiradores, mas seria no palácio que os seus planos passariam a ter resistência involuntária por parte de Rasputin.
Enquanto “esperavam” por Irina, Yusupov oferece a Rasputin um bolo, que Rasputin recusa por ser demasiado doce. Aqui começa o descontrolo do plano: Rasputin recusava-se a comer ou beber o que quer que fosse. Em pânico, Yusupov vai ter com o resto dos conspiradores às escadas. Quando volta, e sem razão aparente, Rasputin muda de ideias, decidindo comer um pastel e beber vinho com o anfitrião. O cianeto de potássio tem um efeito quase instantâneo, então Yusupov achava muito estranho o à-vontade com que Rasputin se sentia, pedindo até para tocar uma guitarra que encontrou no salão.
O que salvou Rasputin da morte por envenenamento? Ironicamente, uma úlcera. Sem saber mais o que fazer e a ver o tempo a passar, Yusupov volta a desculpar-se de Rasputin e juntar-se com os conspiradores, arrancando das mãos uma arma a Pavlovich. Regressando ao salão, encontra Rasputin a observar um armário, disparando-lhe nas costas.
Rasputin cai e passado poucos minutos tem algumas convulsões, sendo que de seguida parou por completo. Julgando que estivesse morto, os conspiradores vão celebrar e esperar pelo momento certo para despejar o corpo. Uma hora depois, Yusupov sente uma necessidade de ver o corpo, descobrindo que este ainda estava quente. Abana-o e não sente nenhuma reação. Mal começa a virar costas repara que o olho esquerdo de Rasputin se está a abrir. Levantando-se rapidamente, Rasputin corre em direção a Yusupov e agarra-o pelos ombros e pelo pescoço. Soltando-se com dificuldades, o príncipe corre a gritar por ajuda dos seus companheiros.
Purishkevic desce as escadas em velocidade e encontra Rasputin a atravessar o pátio. Purishkevich começa então em perseguição atrás de Rasputin. Enquanto corria, dá um primeiro disparo que falha o alvo. O segundo disparo seguiu-lhe o mesmo rumo. Entretanto, e de forma a melhor se concentrar, Purishkevich trinca a mão e volta a disparar. Desta vez acertou diretamente nas costas de Rasputin, que pára de correr. Purishkevic volta a disparar, acertado desta vez na cabeça de Rasputin. Caindo no chão e suportando a dor de três disparos, Rasputin ainda tenta rastejar, mas Purishkevich pontapeia-o na nuca. Depois de arrastarem o corpo para as escadas, Yusupov ainda ataca o inerte Rasputin com um peso. O ataque foi tão violento que as roupas de Yusupov ficaram totalmente manchadas com sangue.
Naturalmente, os disparos levaram a um barulho que rapidamente seria detetado naquela zona, mas depois de dispersar o polícia que os aborda, reparam que Rasputin permanecia vivo. Prendendo-lhe os braços e as pernas com cordas, envolvem o corpo com roupas pesadas. Dirigem-se então ao local do rio onde haviam planeado deitar Rasputin e lançam-no sem se recordarem de lhe colocar pesos, para que o corpo não flutuasse. Contudo, fora suficiente como golpe final para Rasputin.
Quando o seu corpo foi encontrado, a 1 de janeiro, encontraram as congeladas mãos de Rasputin erguidas, sendo que juntamente com a quantidade de água nos pulmões, levou os médicos a crer que o derradeiro golpe fora mesmo o afogamento, apesar de um dos disparos ter acertado no cérebro.
E assim surge o terceiro ato de um dos homens mais detestados do seu tempo. Um ato que o próprio já havia antecipado, mas digno de uma peça de teatro em seu nome. Muitas obras foram criadas através da história de Rasputin, sejam eles espetáculos na Broadway, filmes de Hollywood, ou mesmo a famosa música dos Boney M.
Voltando à entrevista de Leonard Cohen, quando questionado como se sentia por estar próxima da morte sem uma parceira amorosa por perto, este responde com parte da letra da música de Édith Piaf:
“Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Ni le bien qu’on m’a fait
Ni le mal, tout ça m’est bien égal!”
Certamente que Rasputin não terá tido os mesmos pensamentos enquanto tentava escapar do rio Malaya Nevka.
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texto por: Nuno Alves (previamente publicado em diztopia.pt)