Contos de tradição orais são um ritual comum, sendo que atualmente são muitas as famílias que têm a sua própria linhagem de lendas e contos, usados para educar os mais novos.
Obstante à queda dessa tradição e consequente esquecimento dos contos orquestrados pelos nossos antepassados, há quem pontualmente os divulgue em praça pública, nem que seja numa feira medieval, e que desperte o interesse aos mais curiosos.
Por muito tempo que tenha dedicado à atividade medieval, o interesse pela balada Twa Sisters surge-me pela música. São diversos os artistas que reinterpretaram a balada, todos de maneira diferente e, como é normal na tradição oral, com detalhes divergentes. De um lado, observemos a versão de Tom Waits (Two Sisters) em comparação com a versão de Loreena McKennitt (The Bonny Swans): por entre as suas semelhanças, divergem no seu final, sendo que na versão de McKennitt o crime é exposto, enquanto que com Waits o moleiro é falsamente acusado.
Mas em que é que consiste esta balada? Não tendo acesso a todas as versões existentes, o livro English and Scottish Ballads, de Francis James Child, permite-nos alguma lucidez com duas versões: uma inglesa e uma escocesa.
Supõe-se que o conto surgiu na Bélgica, mas Paul G. Brewster chega à conclusão que os seus primórdios surgem na Noruega antes do século XVII. Contudo, há versões não datadas em quase todos os cantos do mundo, mas onde o conto possuiu maior influência foi nos países escandinavos e saxões – Dinamarca, Ilhas Faroé, Islândia, Noruega e Suécia. As versões destes países e as versões britânicas possuem um alto nível de proximidade, divergindo muitas vezes apenas na conclusão, sendo que as versões inglesas não têm uma conclusão escrita, devido a uma deterioração das escrituras que tornou impossível a leitura total das mesmas.
De forma sucinta, a história retrata-nos uma intriga de ciúme entre duas irmãs, numa disputa que por diversas vezes surge como amorosa. A irmã mais velha, repleta de angústia por o homem que ama estar apaixonado pela irmã mais nova, decide empurrar a irmã ao mar, recusando-lhe ajuda quando esta suplica.
Algo comum a todos os textos escritos é a frase: “Some times she sank and some times she swam”, mas o que é certo é que o seu corpo era mais tarde capturado por um moleiro. Observando o jovem cadáver, o moleiro cria um instrumento musical através de partes do corpo da rapariga. Como é possível observar nos dois textos:
Versão inglesa:
“6 The miller runne hastily downe the
clifee,
And up he betook her withouten her
life.
7 What did he doe with her brest-bone ?
He made him a violl to play thereupon.
8 What did he doe with her fingers so
small ?
He made him peggs to his violl withall.
9 What did he doe with her nose-ridge ?
Unto his violl be made him a bridge.
10 What did he doe with her veynes so
blew ?
He made him strings to his violl thereto.
11 What did he doe with her eyes so
bright ?
Upon his violl he played at first sight.
12 What did he doe with her tongue so
rough ?
Unto the violl it spake enough.
13 What did he doe with her two shinnes ?
Unto the violl they danc’d Moll Syms.
14 Then bespake the treble string,
* O yonder is my father the king.’
15 Then bespake the second string,
* O yonder sitts my mother the queen.’
16 And then bespake the strings all three,
‘O yonder is my sister that drowned
mee.’
17 ‘Now pay the miller for his payne,
And let him bee gone in the divel’s
name.’”
Versão escocesa:
“19 The miller quickly drew the dam.
An there he found a drownd woman.
20 You coudna see her yallow hair
For gold and pearle that were so rare.
21 You coudna see her middle sma
For gouden girdle that was sae braw.
22 You coudna see her fingers white,
For gouden rings that was sae gryte.
23 An by there came a harper fine,
That harped to the king at dine.
24 When he did look that lady upon.
He sighd and made a heavy moan.
25 He ‘s taen three locks o her yallow hair.
An wi them strung his harp sae fair.
26 The first tune he did play and sing,
Was, * Fasewell to my father the king.’
27 The nextin tune that he playd syne.
Was, * Farewell to my mother the
queen,’
28 The lastentune that he playd then.
Was, ‘ Wae to my sister, fair Ellen.’”
O instrumento é então criado através de partes do corpo da assassinada, sendo que o instrumento difere entre as versões, mas por norma é uma harpa ou uma viola de gamba (precursora do violino). A construção do mesmo com as partes de um ser humano é suposto simbolizar a ressurreição, com o intuito de revelar ao mundo quem cometeu o crime.
Em ambas as histórias, é revelada a identidade principesca das intervenientes, mas enquanto que na inglesa o final é cortado, – ninguém para além do moleiro descobre quem foi culpado pelo homicídio – na versão escocesa a harpa é tocada ao jantar, com a família real a assistir enquanto que o moleiro, após encontrar a irmã mais velha à mesa, deixa-se tomar pelo espírito da harpa e revela o segredo macabro da irmã Ellen.
E a tradição oral é isto mesmo: extremamente volátil, como apontam as diferentes versões, e com intrigas muitas vezes horripilantes que hoje caem no esquecimento. Não totalmente, não fossem as inúmeras reinterpretações existentes no mundo do espetáculo.
texto por: Nuno Alves (previamente publicado em diztopia.pt)